A lei poderá afastar das urnas
políticos que, mesmo tendo condenações sem direito a mais recursos na
Justiça, elegiam-se continuamente.
Por Jorge Abrahão*
Em 2014, pela primeira vez, as eleições
gerais do país vão ocorrer sob a vigência da Lei da Ficha Limpa. Para quem não
se lembra, essa lei foi aprovada pelo Congresso Nacional após campanha popular
que arrecadou 1,3 milhão de assinaturas de apoio. Entrou em vigor em 7 de junho
de 2010, após ser publicada no Diário Oficial da União, mas só
começou a valer para as eleições municipais de 2012, pois o Supremo Tribunal
Federal (STF) definiu que ela não poderia ser aplicada no pleito geral daquele
ano.
Em
2012, a Justiça Eleitoral analisou 7.781 processos de registros de
candidaturas, sendo que 43% deles diziam respeito a recursos que tratavam da
Lei da Ficha Limpa. Muitos foram julgados mesmo depois das eleições e, por
isso, mesmo eleitos, prefeitos e vereadores tiveram de deixar os cargos e, em
certos casos, novo pleito foi marcado, como em Novo Hamburgo (RS), Bonito (MS)
e Tangará (SC). Os eleitores desses municípios voltaram às urnas em maio de
2013 para escolher novos prefeitos, porque os recém-eleitos tiveram seus
mandatos cassados por não cumprirem a Lei da Ficha Limpa.
Agora,
em outubro próximo, essa lei passará por um duro teste. Se for aplicada como se
deve, poderá afastar das urnas políticos que vinham se elegendo continuamente,
mesmo tendo condenações sem direito a mais recursos na Justiça.
Será
a primeira vez para candidatos a deputado, senador, governador e presidente da
República.
De onde vêm as informações
O
Ministério Público Federal (MPF) possui um banco de dados com mais de 600 mil
informações cadastradas a respeito de possíveis casos de inelegibilidade, que
vão desde contas rejeitadas em municípios até condenações por tráfico de drogas
e homicídios. Esses dados formam a base que os procuradores eleitorais analisam
para formular os processos de impugnação. Até o final de julho, 1.850
candidaturas estavam sendo contestadas por ações propostas pelo Ministério
Público ou por partidos políticos. Esse número deve crescer à medida que a
campanha eleitoral avançar. E muitos processos vão se alongar até depois das
eleições, porque advogados e candidatos podem lançar mão de recursos para
defender a participação no pleito.
O
que o eleitor deve estar se perguntando é em que, afinal, a Lei da Ficha Limpa
vai de fato contribuir para um país melhor. Para juristas e advogados, ao longo
do período de sua aplicação, essa lei vai ajudar a construir uma cultura de
integridade, permeando não só o currículo dos candidatos, mas as ações dos
funcionários da administração pública e do setor privado.
O
ano de 2014 é decisivo porque é nestas eleições gerais que se vai construir a
jurisprudência que valerá para os próximos pleitos. Explicando melhor: a Lei da
Ficha Limpa nunca foi aplicada de forma tão extensiva como agora. Portanto,
ainda não foi “interpretada” pelos tribunais. Como toda legislação, ela tem
lacunas.
Os
procuradores eleitorais mapearam algumas delas em 2012, como, por exemplo, a
que permite que a Justiça suspenda a proibição de o candidato disputar as
eleições caso considere que a condenação que o deixaria de fora das urnas pode
ser revertida. Outro caso é o de candidatos condenados por conselhos
profissionais. A lei é enfática na inelegibilidade dos que foram excluídos do
exercício da profissão por faltas ético-profissionais. Todavia, o registro para
a candidatura não exige um atestado de “nada consta” do respectivo conselho
profissional. Em 2014, prevê-se a participação de pelo menos 24 mil candidatos.
A maioria, desconhecida, pode passar imune à peneira fina da Ficha Limpa nesse
quesito de comportamento ético-profissional.
Mesmo
com as dificuldades, o Ministério Público vai fazer mutirão para cruzar dados e
questionar os candidatos “ficha suja”. Em 2012, a rejeição da prestação de
contas de exercício de cargos ou funções públicas foi o principal motivo que
levou o órgão a impugnar candidaturas.
Quem não pode concorrer
A
Lei da Ficha Limpa não foi inventada no Brasil. Estados Unidos, Espanha, África
do Sul, Uruguai, Luxemburgo, Austrália, França e Bélgica também têm legislações
que impedem, em diferentes situações, a candidatura de condenados, mas nenhuma
delas é tão abrangente quanto a versão brasileira. Entre os australianos, por
exemplo, são inelegíveis para os cargos de senador e deputado federal pessoas
penalizadas a mais de um ano de prisão, independentemente do crime cometido. Na
Espanha, são barrados os condenados por terrorismo e crimes contra as
instituições do Estado, mesmo que ainda recorram da sentença.
É
bom lembrar alguns critérios que tornam o candidato “ficha suja” para a eleição
atual e para as dos próximos oito anos:
-
Casos de condenação, em decisão transitada em julgado ou de órgão colegiado da
Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, compra de voto, doação, arrecadação
ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes
públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do
diploma;
-
Aqueles que tenham contra si representação julgada procedente pela Justiça
Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou dada por órgão colegiado, em
processo sobre abuso de poder econômico ou político;
-
Cidadãos condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão
judicial colegiado, pelos seguintes crimes: abuso de autoridade, nos casos em
que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de
função pública; de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; contra a
economia popular, a fé, a administração e o patrimônio públicos; e por crimes
eleitorais para os quais a lei estipule pena privativa de liberdade;
-
Aqueles que tiveram os direitos políticos suspensos por ato doloso
(intencional) de improbidade administrativa que resulte em lesão ao patrimônio
público e enriquecimento ilícito;
-
Presidente da República, governador, prefeito, senador, deputado federal,
deputado estadual ou distrital e vereador que renunciar a seu mandato para
fugir de eventual cassação;
-
Os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou
fundacional, condenados por beneficiarem a si ou a outros pelo abuso do poder
econômico ou político;
-
Pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações
eleitorais tidas como ilegais;
-
Cidadãos demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo
ou judicial, salvo se o ato houver sido suspenso ou anulado pelo Poder
Judiciário;
-
Magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados
compulsoriamente por causa de sanção, que tenham perdido o cargo por sentença
ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de
processo administrativo disciplinar.
A
Lei da Ficha Limpa representa um grande avanço tanto para garantir maior
representatividade dos políticos eleitos quanto para melhorar o ambiente de
integridade e de transparência na política. Mas a consciência do eleitor
continua sendo a melhor ferramenta em favor de uma atividade política que
atenda as verdadeiras demandas da nossa população. Por isso, é importante
conhecer o candidato, votar e acompanhar a atuação dele, seja no Legislativo,
seja no Executivo.
Outro
ponto importante a ressaltar é que a Lei da Ficha Limpa criou um paradigma para
a administração pública em geral. Hoje, diversos órgãos públicos de Estados,
municípios e da própria União baixam normas exigindo que tanto os funcionários
públicos quanto os ocupantes de secretarias e ministérios sejam “ficha limpa”.
A ideia também chegou à iniciativa privada, com a disseminação da expressão
“empresa ficha limpa” para companhias que atuam com ética.
Enfim,
essa lei está contribuindo para o fim da sensação de que “roubar vale a pena”,
pois impede o acesso de pessoas inidôneas a cargos públicos. Promove, assim, a
“cultura de integridade” que vale para todo mundo, tão necessária para o desenvolvimento
sustentável que almejamos.
* Jorge Abrahão é
diretor-presidente do Instituto Ethos.
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